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quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A Escolha do Jorge: A Viagem Vertical


São poucos os livros que nos agarram de imediato a partir da primeira página mantendo a atenção do leitor até ao fim da narrativa. Os autores que conseguem tal proeza gozam de facto de mestria nas palavras e até genialidade capazes de prender o leitor com a mesma expetativa e inquietação ao longo de toda a obra.
Em concreto, imaginemos o septuagenário Federico Mayol, o personagem principal de "A Viagem Vertical", no dia a seguir à comemoração das suas bodas de ouro do seu casamento ser surpreendido pelas seguintes palavras de Julia, sua esposa:
"- Se não tivesse tanto medo de ti, se o meu caráter fosse mais forte, atrever-me-ia agora a dizer-te o quanto me gostaria… (…) Está bem (…), tu assim quiseste, querido. Queria dizer-te o muito que me gostaria que te fosses embora, que te fosses embora desta casa para sempre e me deixasses só. Sim, dir-te-ia isso. Vai-te embora, Federico. Deixa-me só, quero saber quem sou, preciso disso." (p. 11)
Perante uma abordagem desta natureza, Federico Mayol mói e remói a cabeça em busca de explicações para o sucedido que é simultaneamente uma proposta-decisão da sua esposa Julia. Mayol deambula pelas ruas de Barcelona, de bar em bar, junto dos amigos e dos seus três filhos à procura de respostas, assim como de soluções face à sua atual situação de crise matrimonial que a bem da verdade se vai traduzir em crise existencial.
Mayol vê-se confrontado com o facto de afinal os amigos não serem assim tão seus amigos até porque os seus verdadeiros amigos, os da velha guarda, esses já partiram, restando apenas os encontros com uns quantos amigos apenas como forma de passar o tempo, falando assim da atualidade política, e outras questiúnculas do quotidiano.
Federico Mayol é um fervoroso nacionalista catalão tendo em tempos tido assento parlamentar naquela província independentemente de não ter tido estudos. Federico Mayol vive sob o estigma de ter-se visto obrigado a abandonar os estudos quando a escola foi encerrada quando era adolescente, nas vésperas da guerra civil (1936-1939), tornando-se um voluntário da Cruz Vermelha durante esse período conturbado da história do seu país.
Mesmo com uma baixa escolaridade, Mayol é daqueles casos de sucesso em termos profissionais na medida em que construiu uma grande companhia de seguros cuja direção passou ao seu filho mais velho, agora com 50 anos de idade.
É na sequência desta crise familiar que Mayol constata que afinal também os seus filhos vivem vidas com bastantes problemas sobretudo de natureza emocional, pois também o seu filho mais velho sente-se desiludido com o emprego e deixou de amar a sua esposa. Sente-se triste e frustrado, sentimentos que conduzem à incompreensão por parte de Mayol. Também a sua filha vive uma situação permanente de adultério consumado, o que colide com a formação de católico convicto de Mayol ainda que não seja praticante. Já o filho mais novo dedicou-se à pintura e é encarado por Mayol como uma pessoa desprezível na medida em que vive no mundo dos sonhos assumindo como novo desafio receber a inspiração através dos sonhos para pintar o Porto Metafísico pelo qual se tornou permanentemente obsessivo.
Face a uma tomada de consciência de que a realidade dos outros à sua volta também aguarda por melhores dias, Mayol embarca então numa viagem à procura de si mesmo que tanto geográfica como pessoalmente se trata de uma viagem vertical, sem retorno, ao contrário da Odisseia que se apresenta como uma viagem circular, com retorno.
Neste sentido, Mayol viaja até ao Porto, Lisboa e Madeira para périplos de curta e média duração até que o destino e o sentido da viagem o chamem para embarcar rumo a um próximo destino que possa servir de ancoradouro à sua própria vida.
É neste contexto de viagem dentro da viagem que o leitor ganha consciência da importância do narrador que não está ali por acaso. O narrador vai desempenhar um papel deveras importante no decurso da narrativa, tornando-se a questão central da narrativa cabendo-lhe os desígnios de Mayol relativamente à concretização dos passos a dar a partir da Madeira.
É com este narrador que "A Viagem Vertical" vai ganhando brilho tornando-se naquele género de obras que desperta o leitor para a arte da literatura não só no que respeita à história, à narrativa em si mesma, mas à forma como a narrativa é apresentada, tornando-se, nesta obra em particular, um livro dentro de outro livro que não só enaltece o escritor, mas também empolga o leitor graças à experiência estética que lhe é facultada.
O acaso é uma das pedras de toque nesta obra na medida em que a descrição dos passos dos vários personagens é vista sob a forma de um jogo de computador em que o leitor consegue visualizar mentalmente. É esse acaso que faz e simultaneamente não faz a realidade acontecer.
É também durante estas pequenas viagens dentro da grande viagem da vida que Mayol compreende que há um tempo para tudo na vida e que agora que está sozinho todo o tempo que constata que tem bastante dificuldade em fazer novas amizades e que as pessoas, à semelhança da sua longínqua e amada Barcelona, também vivem com as suas tristezas e frustrações.
"No fim da minha vida, pensou Mayol, será melhor sentir o pó do caminho, a incerteza. E quando a morte me visitar, que me encontre sem família, sentindo apenas fadiga e sensação de perda e um alegre desconsolo.
No fim de contas, sempre estive assim. Só." (p. 84)
"Sentiu uma angústia cósmica, um desassossego profundo ao ver que não sabia para onde encaminhar os seus passos, a sua vida." (p. 121)
Entre uma Lisboa cuja localização geográfica alude a uma cidade em que nunca se sabe se é o início ou o fim de uma viagem, e uma Madeira com inúmeras alusões de Platão à Atlântida, o mítico continente afundado, levanta-se uma outra questão fundamental, a importância do lugar e a necessidade constante de o homem sentir que ocupa um lugar no mundo em que vive.
É neste sentido que é apresentada a tese do "homem fora do lugar", pois, segundo Mayol, "sem querer, [Julia] fez-me um pequeno favor ao transformar-me em alguém consciente de ser um homem fora do lugar. Porque isso é o que sou. Um velho, um homem fora do lugar." (p. 54)
Em sentido mais alargado, Mayol vai mais longe ao afirmar "(…) Só os velhos são verdadeiros homens, pois estão fora de lugar. Que absurdo pensar que um homem deve ocupar um lugar na vida, que absurdo, e no entanto muitos jovens acham que têm de lutar para ter um lugar no mundo, um sítio que não existe porque todos os homens estão fora de lugar, mas só os velhos o sabem e por isso têm a possibilidade de sentir-se felizes ao saber-se fora do mundo e afundando-se cada dia mais no seu atraente abismo próprio. Além disso, pensava Mayol, os velhos podem enganar a morte e jogar com ela imitando a astúcia enganosa da vida." (pp. 201-202)
Este "abismo próprio" é nada mais que a própria "Viagem Vertical" a que todos estamos sujeitos, em que toda a humanidade embarcou, e simultaneamente o espaço e o tempo em que pode ser feliz.

Texto elaborado por Jorge Navarro

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