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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Escolha do Jorge: O Abutre

Franz Kafka (1883-1924) é um dos mais importantes escritores do século passado que ficou conhecido através de obras como "Metamorfose", "O Processo" ou "O Castelo".

O espírito inquietante e perturbador são manifestamente alguns dos pontos a assinalar nas obras do autor checo chegando mesmo as suas histórias a assumir um caráter dilacerante ao leitor que tantas vezes questiona a razão de tanta incompreensão e absurdo. Procurar a lógica de tanta ilógica nas narrativas de Kafka sem, contudo, perder o fio condutor e sem perder a sequência do texto é algo que o leitor tem de colocar de lado deixando-se simplesmente entrar nas obras marcadas pelo ritmo desse mesmo absurdo e incompreensão.
Herdeiro de toda uma tradição judaica bem enraizada na Checoslováquia do início do século XX, Kafka consegue, com rigor e grande mestria, transmitir através dos seus textos, o espírito de sacrifício, resistência, sofrimento e até resignação do povo judeu que se autodenomina de povo eleito ainda que alguma ideia/consciência de culpa esteja de certo modo subjacente nesse próprio modo de ser e de pensar.

Estas mesmas ideias encontram-se espelhadas nos contos de Kafka, nomeadamente na colectânea "O Abutre" que integra "A Biblioteca de Babel" – Coleção de literatura fantástica dirigida por Jorge Luis Borges, publicada pela Editorial Presença.

Um misto de surrealismo e de expressionismo está igualmente patente nestes contos que têm todos o seu quê de estranho ou mesmo de absurdo, mas sem que percamos a vontade de conduzir a leitura até ao fim na medida em que esse pendor misterioso e estranho atraem-nos por se tratar de histórias e personagens totalmente atípicos quando em comparação com a generalidade das obras que habitualmente lemos.

É precisamente o conto que dá título à colectânea que aqui será partilhado.
"Era um abutre que não parava de me dar bicadas nos pés. Já me tinha rasgado as botas e as meias e começava agora a atacar-me os próprios pés. Investia sem parar, levantava voo, esvoaçava inquieto à minha volta, em círculos, e retomava o seu trabalho. Apareceu então um senhor que ficou a observar aquilo durante algum tempo, até que me perguntou porque é que eu suportava as investidas do abutre: «Mas se estou indefeso…», justifiquei-me. «Ele apareceu e quando começou com as bicadas é claro que o quis enxotar. Na verdade, até tentei estrangulá-lo, mas um bicho destes tem imensa força. E depois também já tentou saltar-me para a cara, por isso preferi sacrificar os pés, que agora já estão quase despedaçados.» «Como pode permitir que o torturem dessa maneira», insistiu o senhor, «um tiro e acabou-se o abutre.» «Acha que sim?», perguntei. «E então não pode tratar disso?» «Com todo o gosto», disse o senhor. «Só tenho que ir a casa buscar a espingarda. Consegue esperar mais uma meia hora?» «Isso é que eu já não sei», respondi, e mantive-me assim, paralisado pela dor, durante algum tempo, até que disse: «Por favor, tente lá, seja como for.» «Está bem», disse o senhor, «vou apressar-me». Durante a conversa o abutre tinha ficado sossegado, à escuta, olhando ora para mim, ora para o senhor. Pude então ver que percebera tudo, pois levantou voo, dobrou-se para trás tanto quanto podia, para ganhar balanço, e, como um lançador de dardo, espetou com toda a força o bico da minha boca. Em queda, pude ainda sentir, liberto, como ele se afogava, sem hipótese de salvação, no oceano transbordante e sem fundo do meu sangue." (pp. 17-18)

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