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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A Escolha do Jorge: Impunidade

A proposta de leitura desta semana remete para o mais recente romance de H. G. Cancela (n. 1967) "Impunidade" que é um dos melhores livros que tive a oportunidade de ler este ano ainda que se trate de um livro que esteja a passar bastante despercebido no tocante à crítica presente em diversas publicações semanais.
Iniciamos a leitura de "Impunidade" num misto de mistério e inquietude e sem desvendar a trama central da obra, encontramos vários personagens, adultos e crianças, com laços familiares invulgares entre si não sabendo exatamente como lidar uns com os outros na sequência da consciência de culpa para a qual forma arrastados sem se darem conta ao certo daquilo que esteve na origem da situação.
Independentemente do sentimento de culpa que é transversal aos personagens centrais da obra, não deixa de ser interessante a necessidade de cada um à sua maneira tem para proteger os demais elementos à sua volta.
Os adultos sentem que caminham para um abismo gritante, um poço sem fundo e que sendo adultos não deixam de sentir uma culpa maior não descartando o próprio conceito de crime a partir do momento em que algo até ao momento impune é reiterado deliberadamente.
É neste encadeamento de ideias e nesta narrativa-teia que o leitor mergulha sentindo a angústia dos personagens interrogando-se sempre no que possa estar na base do início da obra. À medida que a leitura avança e o leitor vai tomando consciência dos vários contornos de "Impunidade", vai também constatando os esforços de redenção de cada personagem ainda que no fundo tenha consciência que tal jamais acontecerá.
"Impunidade" é marcado por uma escrita intensa cuja cadência e frases curtas, muitas vezes com uma única palavra, obrigando o leitor a saborear cada momento tornando-o ainda mais intenso, demorado e não menos agressivo e inquietante em várias situações apresentadas.
"Impunidade" é um livro pejado de gritos silenciosos, de frases não ditas, de culpa que chega a doer.
Ainda que uma abordagem nos termos apresentados possa sugerir uma escrita dura, H. G. Cancela presenteia-nos com momentos de verdadeiro deleite para os sentidos quase como se tratasse de uma contradição em que articula de um modo bem conseguido a dureza da narrativa com a doçura das palavras permitindo ao leitor a visualização de momentos duros, mas ternos. Este é, pois, um dos bons exemplos da fusão perfeita entre a ética e a estética no que diz respeito à criação de uma obra literária com bastante significado fomentando inúmeras interpretações não se esgotando em si mesma.
Com "Impunidade" de H. G. Cancela estamos perante um dos mais importantes livros publicados este ano enriquecendo de modo determinante a literatura portuguesa.

Excertos:
"Profano, profano, profano. Profano o tempo, profana a terra, profana a língua, profana a lei. Tempo e terra, língua e lei, sem outro tamanho que não aquele que por si próprios possam produzir. Causa e consequência, circunstância, condição, isso que a si mesmo, e contra a estrita ideia de civilização, se pesa, se mede e se diz. Contra a civilização, contra a culpa, contra a língua, contra a lei. Contra a proibição inscrita na carne como coisa congénita." (p. 7)
"A falta de pudor de quem assume como própria, mas se dispensa dela no mesmo movimento, esperando que a duplicação do erro possa permitir corrigir o gesto. «Já é mais do que culpa», prosseguiu, «é crime». Nenhum de nós o pediu, mas aceitámo-lo como se não nos pertencesse e o pudéssemos esconder debaixo da cama. Empurrámo-lo para lá. Mas entre a responsabilidade e a culpa não há meio-termo. E desta vez não há mais ninguém a culpar.»" (p. 135)
"A civilização é lei, culpa e punição. A impunidade gera sempre violência." (p. 179)
"Qual a quantidade de violência necessária para transformar o tempo em história. Qual a quantidade
para transformar o mundo em nome e o medo em lei." (p. 185)

1 comentário:

  1. Estou a ler este livro, quase culpada por estar maravilhada com o horror. Admiro a "estética", como lhe chama o Jorge.

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