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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A Escolha do Jorge: "O Eléctrico 16"

O Eléctrico 16 é o mais recente romance de Filomena Marona Beja que confiou à Divina Comédia Editores a sua publicação.

O romance desenrola-se no período entre 1943 e 2012, mais especificamente desde o fim da 2ª Guerra Mundial até às eleições legislativas realizadas em Portugal, em 2012.
Parca em palavras e muitas vezes contida, a escritora não deixa nada por dizer, quer através dos personagens, quer pelo narrador que interage intercaladamente com os personagens à medida que se desenrola a história. Tal como a carreira percorrida pelo elétrico 16, num percurso ribeirinho, partindo de Xabregas até Belém sendo um dos percursos mais longos dos transportes de Lisboa.
Numa espiral sucessiva de passado-presente-passado-presente, somos confrontados com os anseios e receios da população portuguesa tanto de há 50-60 anos atrás, como nos nossos dias, os avanços tecnológicos que tiveram lugar, assim como as expetativas e a esperança face ao futuro que, à semelhança da candidatura do General Humberto Delgado, em 1958, foram defraudadas pelo regime de Salazar. Atualmente também questionamos quais são as expetativas do povo após o ato eleitoral de 2012 na medida em que se tem assistido a um continuado agravamento das condições de vida dos portugueses. A ideia de desconfiança de um sistema democrático que tanto se desejou após quase meio século de ditadura traz cada vez mais a real noção das perdas que entretanto tiveram o seu impacto incluindo em coisas tão simples do dia-a-dia como a supressão de certas carreiras como a do elétrico 16 que dá título ao livro.
A novidade das bilhas de gás, a generalização da eletricidade, as torradeiras, os autocarros que timidamente circulavam em Lisboa, a inauguração do metropolitano, os automóveis, a televisão, os computadores, o iPod, o Facebook, a banda larga, o plasma e até as máquinas de café tão em voga que basta colocar a pastilha e ligar a água são alguns dos vários exemplos de desenvolvimento tecnológico que Portugal tem vindo gradualmente a acompanhar desde os anos 40 do século passado tornando-se, deste modo, um país desenvolvido como os outros países do mundo ocidental.
Do ponto de vista social, também os amores contidos, mas que se desejam, o amor que se quer correspondido, a virgindade que se oferece ao homem que se deseja, o receio de cair em desgraça, os falsos moralismos, os corpos que se entregam ante o olhar indiscreto das vizinhas invejosas que mantêm as janelas entreabertas, o boato que se espalha na proporção da inveja, o olhar cabisbaixo e envergonhado aquando da compra do preservativo, o aparecimento da pílula revolucionária, a gravidez (in)desejada, a parteira que faz desmanchos no Poço do Bispo. Parteira para quem precisa, pecadora aos olhos dos outros. A coragem de assumir uma gravidez sem necessidade de casamento. Outra grande coragem. A mesma facilidade com que se realiza um casamento, também se põe termo a ele com o divórcio, pais que não sabem o que fazer dos filhos, filhos que são o retrato mais fiel dos pais, cada vez mais inconscientes e inconsequentes, prisioneiros das tecnologias e da realidade virtual encarando a vida de forma simples e prática com a resolução à distância de um click.
A liberdade que se ganhou com o 25 de abril de 1974 e que pôs termo à longa ditadura é em si mesma dotada de condicionalismos e contrariedades, nem sempre utilizada da melhor forma e que no entender da personagem principal “a liberdade é uma luta” (p. 251).
O Eléctrico 16 mostra-nos, deste modo, um Portugal repleto de desafios por concretizar perante ganhos e perdas que não tem sabido gerir bem após a «Revolução dos Cravos». O Eléctrico 16 coloca constantemente o passado e o presente do país em confronto encontrando muitos pontos em comum, nomeadamente ao nível político e económico, em que os portugueses pouco ou nada esperam dos sucessivos governos, sendo confrontados com uma espiral de desemprego cada vez mais preocupante, assim como o agravamento das condições de vida que traz consigo a perda de direitos constitucionalmente estipulados.
Da mesma forma que milhares de portugueses se mobilizaram por iniciativa própria, em Santa Apolónia, em 1958, esperando o General Humberto Delgado, também hoje em dia, os cidadãos têm organizado algumas manifestações arrastando multidões para as ruas na tentativa de lhes ser devolvida a esperança num país com um futuro melhor.
A grande questão de fundo de O Eléctrico 16 é precisamente «Para onde caminhamos?»
Filomena Marona Beja presenteou-nos com uma obra que nos obriga a pensar para além do prazer da leitura que nos proporciona tendo em consideração o seu estilo muito próprio, muito contido, mas com sentido aguçado e oportuno.
Filomena Marona Beja desvenda algumas das histórias por trás do seu novo romance O Eléctrico 16:
Excertos:
“Iam apanhar o elétrico a Xabregas. Carreira-16, para Belém.
Em Lisboa acabara de se estrear o metropolitano. Os autocarros, contudo, eram ainda poucos, não chegando a cumprir trinta percursos por toda a Cidade. E nenhum subia à Madre de Deus.
Andava-se de carro-elétrico.
Antes das sete e meia, o bilhete tinha o dobro do comprimento. «Bilhete operário». Custava dez tostões e valia para o regresso. À tarde, depois das cinco.
Por causa do bilhete operário, o Gordo tinha sido preso.
- Injustiça!… Discriminação! – clamara. No Café do Poço do Bispo.
Porquê?!… Porque se haveria de admitir aquele sistema de bilhetes, obrigando os trabalhadores a sair de casa de madrugada? Sim! E só rente à noite se lhes dava direito a regressar.
Entre dentes, mestre Garção avisou:
- Cuidado! Cala-te…
Reparasse em quem acabava de entrar.
O Gordo não quis saber. Repetiu: aquilo era discriminação.
- Os chuis e os guitas andam à borla, sempre que lhes apetece!
Devia era haver um passe social. A ele teria direito quem realmente trabalhasse. Seria válido para todos os transportes, e a qualquer hora.
- … Passe social!
A Pide levara o Gordo nessa noite.
Horas seguidas de perguntas. Em pé e sem o deixarem dormir. Até cair no chão.
«Hipoglicemia», dissera alguém. Talvez um médico.
Acabariam por o soltar, recomendando que não voltasse ao «social». Fosse por causa dos transportes, fosse por outra coisa qualquer.
- Verdade, Avó?!… Isso aconteceu, no teu tempo?
Acontecera.
Nesse tempo, a Carreira-16 era das mais movimentadas.
De segunda a sábado, os carros saíam de Xabregas já apinhados. Sobretudo homens de boné e lancheira a caminho dos estaleiros, das fábricas. Cais do Sodré, Rocha, Alcântara.
Gente pobre. Mal tinha ido à escola. Andara ao trapo. E só levara vacinas quando fora chamada para a tropa.
De resto, tirando a tuberculose, pouco importavam as suas doenças.
A gravidez das mulheres também não. Pariam, sem nunca terem ido ao médico. Sem haver quem as levasse para a maternidade, evitando-lhes a morte. A delas, e a das crianças.
Proletários.
Tão pobres que não pagavam impostos. E nunca o fisco descobriria algo que lhes penhorasse.” (pp. 32-34)
“E acabavam de aparecer as bilhas de GAZCIDLA. Treze quilos e seiscentos gramas de gás butano metidas à força em botijas de aço.
UMA CHAMA VIVA, ONDE QUER QUE VIVA!
Quanto ao GAZCIDLA, a Mãe resistia-lhe.
Deitou contas aos preços da lenha, do carvão e do petróleo. A tal chama viva ficaria mais barata? Ou seria mais dispendiosa? Valeria a pena mudar?
- O que achas, Orlando?
- Por que não?
Considerou que não alcançara resposta. E continuou renitente.
Nisto, a «Campanha dos Santos Populares»!
Durante esse mês de Junho, oferta dos custos do contrato comprando-se esquentador e fogão de três bicos com forno.
Passava tudo dos dois contos e oitocentos. Mas pagavam-se em vinte e quatro prestações.
A Mãe rendeu-se.
Chegou o fogão. Esmalte branco, muito prático a acender e fácil de limpar.
Depois, as bilhas do gás. E com as duas primeiras, viera um brinde. Uma botija-miniatura em plástico prateado. No bojo, uma ranhura para meter as moedas que se poupariam com o GAZCIDLA. E o fundo móvel, para que se tirassem quando fossem precisas.
A Fernanda extasiada:
-Ai menina, um mealheiro… e eu queria tanto um!
- Gostas?… Fica com ele.” (p. 62)
“ Mesmo que as grandes causas estejam proibidas…
Não se apaziguava o povo. E mesmo a medo, continuava a falar-se de Liberdade. A reclamar Justiça.
Contudo, o medo também se vencia.
- … isso há de vir ao de cima, nas eleições que estão aí à porta!
E pela primeira vez, na voz de Joel, um nome:
- Humberto Delgado.
(…)
- O povo vai querê-lo para Presidente!
Fora Joel quem o dissera, no elétrico da carreira 16. O que levava os operários a caminho do trabalho.
Ia haver eleições. Estavam marcadas para junho do ano seguinte.
- … e não pense a canalha da situação que são favas contadas.
Um povo tem o seu amor próprio. Por vezes esmorece e adia a esperança. Bastará, porém, alguém dar um sinal, e reanimará.
- Mas para dar o sinal, e reanimar o povo, é preciso coragem, e inteligência.
- O Delgado é muito inteligente e tem muita coragem!
Chegara a vez do José Emílio falar do General.
- Um homem sem medo!… Se avançar, terá muita gente a apoiá-lo!
Descrevia-lhe o génio, sem aludir ao conhecimento nem à proximidade. Mas com tanto entusiasmo, que o próprio Joel fez um aviso: «Moderação!»
- Zé, resta saber o que é que estes gajos cozinham, daqui até lá.
- Ora…” (pp. 51-52, 109)
“Nada do que José Emílio contava viera nos jornais daquela época. Manhãs e tardes de maio de 1958.
Muito menos passara na televisão. Telejornal a preto e branco, à hora do jantar.
Ao certo, ninguém sabia quem dera a ordem. Apenas que chegara a meio da noite: qualquer alusão ao regresso a Lisboa de Humberto Delgado seria silenciada.
E assim, todas as notícias da campanha do General iam sendo cortadas. Apagadas as imagens. E também as gravações das perguntas que lhe tinham sido feitas. Do que respondera.


(…)


Texto da responsabilidade de Jorge Navarro

2 comentários:

  1. Ora aqui está um livro, que me aguçou o apetite. Parabéns ao Jorge, parabéns à Cristina.
    Um excelente 2014, para ambos.

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  2. Tb fiquei com vontade de ler, Nuno! Bom ano p ti tb! Bjs

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